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Então, os soldados levaram o fogão

Além do Direito (UFSM), cursei Pedagogia (FIC, hoje UFN), de 1961 a 1964. À época, o Estado do Rio Grande do Sul, graças à Lei Brossard, contemplava com uma bolsa de estudos para pós-graduação a quem obtinha o melhor lugar. Nessa condição, escolhi a Universidade de São Paulo (USP) para, em 1965, fazer o curso de Especialização na área do Comportamento Humano. Assim, fui parar no campus da USP, no Bairro Butantã, onde vários prédios de sete andares eram moradia para os estudantes. O Bloco F era destinado exclusivamente aos alunos já graduados. Éramos, mais ou menos, em número de 90, oriundos de estados brasileiros e do Exterior. No Campus, um restaurante universitário oferecia refeições a alunos, professores e funcionários da USP.

O ano de 1965, pós 64, vivia um clima tenso pela repressão nas universidades. Na USP não era diferente. Assembléias de estudantes ocorriam frequentemente, com críticas, algumas muito ácidas, ao regime ditatorial, o que incomodava muito quem mandava no país. Uma medida mais drástica para impedir a realização de assembléias foi adotada pela reitoria, determinando o fechamento do restaurante, provocando revolta e protestos. Impedidos oficialmente de fazer refeições no Campus, os estudantes, especialmente as meninas, resolveram ir para a cozinha, preparando o possível com um fogão a gás, o único que deixaram disponível para esquentar a água.

Assim, passamos todos a frequentar o restaurante, que oferecia as coisas preparadas pelas gurias, como as chamávamos os do Sul. Aconteceu, então, algo que as minhas retinas, mesmo já cansadas, ainda lembram. Era uma noite fria de julho. Em plena madrugada, fomos despertados pelo barulho dos motores e pela gritaria dos estudantes, anunciando a invasão do Campus pelo Exército, com caminhões cheios de soldados. Diante do inusitado e do alvoroço geral, todos descemos dos edifícios, com cobertas na cabeça e nos ombros como proteção contra o frio. Logo, ao descer do elevador, comecei a viver uma experiência singular. Alguns soldados, vigiados por outros, pegaram o fogão a gás, que estava no restaurante, e, nos ombros, levaram-no até um dos caminhões. Todos os presentes, professores e estudantes, moradores dos edifícios, começamos a cantar o Hino Nacional, com incontida vibração. Um espetáculo inesquecível e emocionante. Assim, levado por soldados, dentro da noite, o fogão a gás nos deu adeus, deixando a todos órfãos de comida e apoio, em memorável noite.

Hoje, após mais de cinco décadas, é instigante lembrar como, naquele tempo, protestávamos demonstrando inconformidade com a repressão e a falta de liberdade no país. A invasão do campus da USP, sem dúvida, ainda hoje, adverte que a ameaça das armas não pode nem deve conviver com a vida universitária.

Texto: Máximo Trevisan
Advogado

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